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Vacinação contra a COVID-19 no Brasil deve ser universal e atender as prioridades do Plano Nacional de Imunização
O Observatório Covid-19 BR e a ANESP (Associação Nacional de Especialistas de Políticas Públicas e Gestão Governamental) lançaram na última segunda feira, 12 de abril, uma nota em desaprovação à medida que autorizou a compra de vacinas pela iniciativa privada, medida eticamente equivocada e que acentuará a desigualdade em meio a pandemia.

12 de Abril de 2021 • Observatório COVID-19 BR • ANESP

No mesmo dia em que recebemos a notícia de que o Brasil quebrou seu recorde de mortes por COVID-19, ultrapassando a marca de 4000 óbitos em 24 horas, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que permite às empresas furar a fila da vacinação contra a COVID-19 no Brasil. Essa é uma decisão descabida que, mais uma vez, acentuaria as desigualdades sociais, além de ser eticamente afrontosa e equivocada como suposta estratégia de combate à pandemia no Brasil hoje.

No concorrido mercado global de vacinas contra a COVID-19, a totalidade das doses de imunizantes até o momento aprovadas por agências reguladoras já está contratada por governos que foram capazes de planejar a sua vacinação e se adiantaram na aquisição de imunizantes, como foi o caso do Chile, ou mesmo financiaram o esforço de desenvolvimento de vacinas, como visto no caso da Operação Warp Speed nos EUA. A realidade atual é que há escassez de vacinas disponíveis para compra e apenas poucos países contam com doses suficientes para atingir uma adequada cobertura vacinal. Considerando essas limitações críticas e a urgente necessidade de vacinar todo o mundo, os próprios fabricantes dos imunizantes aprovados recusam-se a vender para entes privados. Tal decisão tem sólida sustentação ética e epidemiológica.

O impacto no combate à pandemia será robusto quanto maior for a porcentagem de pessoas vacinadas na população. Na ausência de vacinas suficientes para todos, a estratégia adotada em quase todo o mundo foi priorizar as pessoas mais suscetíveis ao desenvolvimento de doença grave ou severa, como idosos e indivíduos com comorbidades. Nos países de renda média e mais pobres, a população vulnerável é numerosa e não inclui aqueles com maior poder aquisitivo. Entenda-se por população vulnerável tanto os segmentos da população de renda mais baixa e piores condições de vida, quanto os mais suscetíveis a desenvolver formas graves e severas da doença. No Brasil, há uma clara sobreposição desses grupos, na medida em que comorbidades associadas às formas mais graves da COVID-19 -- como obesidade, diabetes e hipertensão -- estão desproporcionalmente mais presentes na população de renda mais baixa.

Uma vez que produtores de imunizantes devidamente aprovados por agências regulatórias priorizam a venda em grandes quantidades para governos, restaria aos atores privados a compra de imunizantes não devidamente certificados e aprovados por agências regulatórias como a Anvisa. É importante enfatizar que a compra de imunizantes pelo governo para repasse ao setor privado como alternativa à impossibilidade de compra em grandes quantidades diretamente com os produtores de vacinas caracterizaria um ato escancarando de “fura-fila” em relação aos grupos da população definidos como prioritários, favorecendo aqueles com poder econômico. Adicionalmente, há um caráter potencialmente inconstitucional nessa ação, uma vez que a Constituição de 1988 prevê acesso universal e gratuito à saúde para todos os cidadãos brasileiros. A medida fere ainda o princípio de equidade do SUS.

Tanto do ponto de vista ético como epidemiológico, é inconcebível que empresários e seus funcionários e familiares, que não apresentem fatores de risco nem estejam entre a parcela da população mais exposta, sejam vacinados antes dos grupos estabelecidos como prioritários. Os critérios de vacinação do PNI para grupos prioritários seguem regras bem definidas, baseadas em dados científicos e devem ser respeitados.

Os impactos sanitários da ineficiência dessa medida são claros quando analisamos as medidas de controle de uma pandemia com transmissão comunitária. O controle da pandemia pela vacinação se dá em nível coletivo e não individual. Não existe vacina com 100% de eficácia. Dessa forma, é necessário que uma grande parcela da população esteja vacinada para garantir uma menor circulação do vírus na comunidade e, portanto, reduzir a chance de que novas variantes do vírus emerjam. O grande risco é que a presença de poucos e dispersos aglomerados de pessoas vacinadas num cenário de transmissão descontrolada possa criar condições favoráveis para o surgimento de novas variantes com potencial de escapar da resposta imune protetora induzida pela vacina.

O ganho econômico de uma eventual vacinação seletiva e elitista de empresários e seus funcionários e familiares é negligível. Uma enorme parcela de funcionários de micro, pequenas e médias empresas, profissionais autônomos e profissionais em busca de uma recolocação no mercado de trabalho continuaria desprotegida e incapaz de retomar a plena atividade econômica do país.

A disposição em colaborar com o controle da pandemia por parte dos atores privados é muito bem-vinda, desde que isso não resulte em uma competição com governos na oferta escassa de vacinas que seriam dirigidas à população geral e que não seja feito em desrespeito à definição de grupos prioritários. Sim, o empresariado pode atuar apoiando medidas que efetivamente ajudariam o país a sair do trágico momento atual, e mesmo apoiar a construção de estratégias integrando conhecimentos científicos multidisciplinares, fazendo valer a competência do SUS, para que possamos evitar novas ondas potenciais e estar preparados para enfrentar futuras pandemias, colocando preservar vidas como o principal valor. Em sintonia com ações que consideramos urgentes e necessárias no momento atual, enfatizamos que o empresariado brasileiro pode, a tempo, contribuir de forma substancial para mudar o curso da pandemia em nosso país.

A impossibilidade de entes privados comprarem doses num futuro próximo por si já mostra que esse projeto constitui um desvio irresponsável em relação ao que deveríamos estar fazendo nesse momento. A fim de avançar com o processo de vacinação, diferentes ações devem ser tomadas. Temos verificado a necessidade de um esforço de política externa para garantir o suprimento de IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo, essencial para a fabricação de vacinas) para as vacinas produzidas localmente e para a compra de doses prontas por parte do governo. A ampliação da produção nacional de vacinas envolve também a ampliação da capacidade produtiva das fábricas no país, acelerando o processo de transferência de tecnologia para produção de IFA localmente. Consideramos esses esforços fundamentais e merecem ser apoiados e fortalecidos.

Finalmente, contribuições fundamentais do setor privado também incluiriam o apoio a lockdowns, investimento na produção e distribuição de máscaras tipo PFF2, a aquisição de testes diagnósticos para a detecção do vírus e suas variantes (teste de antígenos ou RT-PCR, incluindo insumos necessários) para prover um sistema de vigilância viral e genômica, além de apoio a campanhas de conscientização da população, reestruturação dos espaços de trabalho para garantir segurança de seus profissionais e apoio para a efetiva inserção de agentes comunitários de saúde nas ações locais. Apoios substanciais nessas diversas áreas podem ser críticos para juntos, mudarmos a triste realidade que vivemos hoje. Outras contribuições em políticas específicas para as populações socialmente mais vulneráveis, ao lado do auxílio emergencial, incluem a doação de alimentos, doação de equipamentos necessários para ensino à distância, ações de inclusão digital, e tantas outras.

Num cenário de pandemia descontrolada não há solução mágica que resolva o problema do dia para a noite. No entanto, somando todas as forças agora, podemos sim mudar os próximos momentos da pandemia, ajudando a salvar milhares de vidas, até que o nosso país esteja majoritariamente vacinado. Contamos com a serenidade, a racionalidade e o compromisso do Senado com o nosso povo, para que não se dobrem aos grupos de interesse que representam o setor privado e rejeitem esse projeto, cumprindo seu dever de garantidores da universalidade, equidade e igualdade do SUS e transmitindo para a população a mensagem de confiança nas instituições públicas e seus representantes.

Fonte: Observatório COVID-19 BR e ANESP (Associação Nacional de Especialistas de Políticas Públicas e Gestão Governamental)

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