Ciência, Potência e Memória
por Roberto A. Kraenkel*
"Quand la violence eut renouvelé le lit des hommes sur la terre, un très vieil arbre, à sec de feuilles, reprit le fil de ses maximes… Et un autre arbre de haut rang montait déjà des grandes Indes souterraines, avec sa feuille magnétique et son chargement de fruits nouveaux."**
Saint-John Perse (“Vents”, 1960)
A pandemia de SARS-CoV-2 tomou o mundo e o transformou em algo que a maioria das gerações atualmente vivas não conheciam. Se é verdade que o espectro da catástrofe iminente que nos assombrava no início de 2020 foi substituído por um cotidiano alterado – uma normalidade do horror domesticado que aqueles que passaram por guerras conhecem demasiadamente bem, não menos verdade é que o esforço humano de se contrapor ao vírus revela forças de estranhas proporções, de uma nova beleza, e que requerem tempo para que sua potência se mostre – que do magma se faça rocha.
Ciência e cientistas estão no centro desta cena. Os olhos de todos se voltam ao seu fazer. Esperamos respostas. Esperamos armas. E ansiamos por uma volta ao que antes era o nosso cotidiano. Ao cientista não cabe dar garantias. Alguns dentre nós, cientistas, talvez se sintam no dever de reassegurar as pessoas. E a dizer-lhes que sim, nós podemos. E talvez, de fato, possamos. Talvez tenhamos os meios de eliminar o vírus, ou então de lhe subtrair seus impactos. Mas a essência da ciência é a dúvida, e todo caminho, mesmo que nos leve a um ponto desejado, é tortuoso.
É nas idas e vindas que se constrói coletivamente a ciência. No Brasil, em especial, mas também para além de nossas fronteiras, o iletrismo científico faz com que ciência e cientistas sejam percebidos como autoridades arbitrárias. A própria ideia de que a força do saber científico vem de sua construção coletiva, de sua falibilidade e de sua constante reconstrução, é incompreendida largamente e vista como fraqueza, mesmo sendo o seu contrário.
Pergunta-se o cientista como mover-se neste pântano. Se pela luz ou pela sombra.
Durante a epidemia de Covid-19 vemos as tensões acima se tornarem mais agudas. Nas redes sociais, jornais e programas de TV discutem-se conceitos da ciência e intelectuais e cientistas se veem de súbito numa arena de interesses à qual estão pouco acostumados. Aquilo que nos parece ser matéria de debate técnico transforma-se em elemento de discussão de sofistas. Esta trajetória, ainda em curso, deixará marcas e precisará ser revisitada. Historiadores e historiadoras são aqui fundamental importância.
Há novas potências que se revelam do encontro de cientistas, médicos, pesquisadores e profissionais da saúde pública, cientistas sociais e intelectuais. A colaboração entre diferentes áreas se fez imperativa e também mostrou as condições de seu sucesso: a generosidade, o respeito aos saberes múltiplos, o andar ao passo, a competência técnica, acurácia, a escuta, a prontidão, o compromisso. Ao mesmo tempo a urgência da época impõe que tudo isto seja eficaz e emerja ‘das grandes Índias subterrâneas’ como magma do saber em um mundo de urgências. Há um desafio continuamente presente.
Covid-19 nos desloca de nossos hábitos, de nossas certezas. Para o bem e para o mal. Saber como cada qual se portou, quais suas angústias, quais suas superações e tropeços, sua linha justa, seu suor. Tudo é importante. Que tudo esteja na luz de um teatro cheio. Que se torne documento e memória. Este livro nos leva a reflexões e relatos que dimensionam este momento, que o tornam concreto, que o fazem matéria mesmo da história.
Ao cientista cabe lembrar-se de seu sósia no espelho, o poeta. Paul Celan diz que é tempo que a pedra se decida a florir. Este tempo, o haverá. E a memória desta época abrirá caminhos para os que dela emergirem.
Roberto A. Kraenkel
São Paulo, Fevereiro de 2021.
*Roberto Kraenkel, paulistano de 61 anos, é físico, tendo obtido seu doutorado em 1988. Desde 1991 é professor do Instituto de Física Teórica da UNESP/SP. Na última década tem se dedicado à modelagem matemática de sistemas biológicos de importância na ecologia e epidemiologia. É um dos criadores do Observatório Covid-19 Br.
**"Quando a violência renovou o leito dos homens na terra, uma árvore muito velha, com folhas secas, apanhou o fio de suas máximas... E outra árvore de alto nível já se erguia das grandes Índias subterrâneas, com sua folha magnética e seu carregamento de novas frutas." Vents, de Saint-john Perse, Gallimard, Paris, 1946 - Tradução feita por Lorena Vita Ferreira