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Histórico

A Memória como Missão

por Rafael Garcia*

É muito comum em conversas entre jornalistas ouvir colegas dizerem que, apesar das muitas dificuldades que se impõem hoje à profissão, algo que nutre uma satisfação pessoal no trabalho é a oportunidade de "testemunhar a história".

O uso dessa expressão é um chavão que tem, sim, um fundo de verdade, mas transparece talvez visão um pouco limitada daquilo que os jornalistas crêem ser papel do historiador. 

Se aquilo que se pretende retratar é um fato corrente, não seria papel dos jornais fazê-lo, e lidar com o imediato? À História produzida na academia não cabe apenas recolher os recortes de notícias e construir uma narrativa a posteriori? 

Um jornalista relativamente afastado de afazeres acadêmicos talvez não seja a melhor pessoa para responder a essas questões e traçar limites neste debate. Mas aos historiadores que estiverem abertos à entender a perspectiva não acadêmica para o problema, eis um conselho: a maioria daqueles que vivenciaram o dia-a-dia de uma redação (ou do trabalho de reportagem no home-office) durante a pandemia de Covid-19 não estavam preocupados com o que iriam "deixar para a história". 

Não se trata de discutir bom ou o mau jornalismo. E não se trata de reconhecer que o jornalismo é ferramenta fundamental do historiador. Acontece que a preocupação mais premente dos jornalistas em 2020 — responder a questões urgentes durante a emergência imposta por uma catástrofe sanitária — não deixou muita brecha para uma reflexão de longo prazo sobre como antecipar a história da pandemia a ser lida em retrospectiva. 

A rotina da mídia jornalística de se expor a um volume grande de fontes e promover curadoria de informação em tempo hábil para a sociedade reagir aos fatos é um processo onde não há controle sobre todas as pontas. Muito se perde ao longo do caminho. 

Isso não ocorre por desprezo dos jornalistas à história: todos eles devem saber que é essencial sempre buscar o contexto histórico daquilo que se noticia. Como entender o impacto social da Covid-19 sem uma comparação com a pandemia da gripe espanhola de 1918? E mesmo na história recente, como avaliar a resposta do Brasil à chegada do coronavírus sem a perspectiva de outras emergências sanitárias, como a zika e a febre amarela? 

A aflição de cobrir a crise da Covid-19, para muitos jornalistas, porém, tem sido a de ver a história se desenrolar como uma avalanche sem ter tempo para contemplá-la. Parte da ambição do projeto que norteia este livro, muito oportuna, é a de cobrir esta lacuna, para fortalecer uma compreensão atual e futura da pandemia. 

Na data em que este prefácio foi escrito, a preocupação mais premente é saber quando a campanha de vacinação vai avançar, e se ela vai conseguir abreviar o sofrimento da pandemia. Queremos saber se a incompetência do poder público em prevenir mortes pode ser responsabilizada criminalmente. Queremos que a ciência responda se a Covid-19 vai se tornar uma endemia sazonal permanente. 

Mas nem sempre refletimos como chegamos até aqui. Quando foi que o uso de máscaras se tornou um costume? Como conseguimos (ou não) nos adaptar às dificuldades do distanciamento social? Quando as conversas domésticas passaram a ter como temas a "imunidade de rebanho" e a genômica de vírus? Como famílias mais pobres conseguiram sobreviver perdendo 70% ou 90% da renda? Como as crianças foram educadas durante um período tão desafiador? Como familiares dos mortos pelo vírus lidaram com o luto, dia após dia? 

Uma aproximação mais direta dos historiadores com seu objeto, como propõe esse livro, pode legar para o futuro respostas mais humanas que, nem sempre, o jornalismo consegue prover. Em 2020, o jornalismo esteve numa busca permanente de tentar enxergar o que mais nos assustava (o número de mortos, a indiferença das autoridades, a negação da ciência pelo poder público...). Esse estado permanente de ansiedade por vezes embaçou nosso olhar para a vida privada, que os testemunhos coletados para o acervo digital deste projeto recuperam com grande riqueza de detalhe. 

Se a fronteira entre o que é história e o que é reportagem se confunde dentro do Memorial da Pandemia, talvez a força da proposta resida justamente nisso: em propor uma fonte para alimentar um jornalismo carente de perspectiva e uma historiografia carente de agilidade. 

Nós sabemos (mais ou menos) como a pandemia começou. Não sabemos como ela vai acabar. Se no futuro queremos construir uma narrativa sólida e imune à desinformação que se tornou uma "comorbidade" do país durante a pandemia de Covid-19, a ambição de construção historiográfica deste projeto parece muito útil aos historiadores nessa missão. E útil aos jornalistas, também. 

Rafael Garcia

São Paulo, 14 de fevereiro de 2021.

*Graduado em jornalismo pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), Rafael Garcia foi bolsista do programa Knight Science Journalism do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Com 25 anos de experiência em redações (20 dos quais dedicados à cobertura de ciência), atuou em veículos de imprensa como Folha de S.Paulo, Scientific American Brasil, Galileu e G1. Foi vencedor do Prêmio Exxon de Jornalismo de 2015 na Categoria Informação Científica. Desde 2019 é repórter de ciência do jornal O Globo.

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